13.5.10

“O Rio Grande do Sul tem preconceito contra o Brasil”

“O Rio Grande do Sul tem preconceito contra o Brasil”

“O Rio Grande do Sul tem preconceito contra o Brasil” O cineasta Jorge Furtado discute o isolamento cultural e político do RS
Jorge Furtado recebeu o Sul 21 na sede da Casa de Cinema e falou sobre o atual ambiente político-cultural no Rio Grande do Sul e a relação do Estado com o Brasil. Na avaliação do cineasta, o RS sofre um certo isolamento em relação ao conjunto do país, fruto, entre outras coisas, de uma carregada carga de preconceito e de orgulho regionalista. “Essa idéia de ficar louvando uma coisa porque é tua é algo que muitas vezes chega às raias do ridículo, como a prática de cantar o hino gaúcho antes de cada jogo de futebol. É um negócio bizarro”, exemplifica. (Entrevista a Marco Weissheimer e Marcelo Carneiro da Cunha)


Sul21 - Qual sua avaliação sobre a situação político-cultural do Rio Grande do Sul hoje e sobre a relação que o Estado mantém com o resto do país?
Jorge Furtado: O Rio Grande do Sul sempre teve algumas características muito próprias. É um Estado que vive no limite do Brasil, no limite da América Latina e numa região de fronteira. Na sua origem, foi uma região muito disputada por espanhóis e portugueses. Aparentemente é o Estado que menos se parece com o Brasil. Temos essa identidade muito particular que tem algumas coisas interessantes como o jeito de falar, o uso do “tu”, uma seriedade e um certo sentimento trágico causado talvez pelas várias guerras que tivemos. Por outro lado tem algumas coisas muito ruins. Em termos culturais, por exemplo, somos muito isolados do Brasil e de coisas muito boas que o país tem. O Brasil tem uma cultura riquíssima. Basta pensar na música brasileira, nas artes plásticas, na literatura. E o Rio Grande do Sul é meio auto-suficiente. Já escrevi sobre essa idéia do “é melhor porque é nosso”, desse sentimento de orgulho que se manifesta até em propaganda de cerveja, de algo que é bom e que não pode sair daqui. Como se qualquer coisa que saísse daqui deixasse de ser nossa.
Muita gente enfrentou esse problema - se faz sucesso no Brasil, deixou de ser nosso -; a Elis Regina e o Lupicínio para citar dois exemplos. Isso gera um certo isolamento.

Sul21 - E você acha que isso ainda existe?
Jorge Furtado: Existe sim. E bastante. Tem uma música que só toca aqui, uma literatura que só sê lê aqui, um cinema bastante regional. Quando Samuel Johnson disse que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas, ele esqueceu do regionalismo, que é uma fronteira ainda além. Essa idéia de ficar louvando uma coisa porque é tua é algo que muitas vezes chega às raias do ridículo, como a prática de cantar o hino gaúcho antes de cada jogo de futebol. É um negócio bizarro. Caetano Veloso diz uma coisa engraçada sobre isso. Segundo ele, o gaúcho é a única pessoa no Brasil que se apresenta dizendo que é gaúcho, como se isso fosse uma vantagem. Ninguém se apresenta dizendo que é de Goiás, ou do Mato Grosso. E se tu fala disso logo vem alguém para te acusar de não gostar do Rio Grande.
Eu nasci aqui (em Porto Alegre) e sempre morei aqui. Já viajei bastante, mas sempre morei aqui, gosto de morar aqui e não pretendo morar em outro lugar. Mas acho esse isolamento e esse orgulho meio sem motivo um problema. Comemora-se todo ano a data de uma guerra que perdemos. É estranho. Ao mesmo tempo, temos coisas que dão orgulho mesmo, como, por exemplo, ser o Estado com o maior índice de leitores do país. Porto Alegre foi e creio que ainda é a cidade com mais salas de cinema por habitante. Temos uma qualidade de vida acima da média. Tudo isso é bom, mas o isolamento não faz sentido. É claro que é preciso preservar e divulgar aspectos da cultura local, mas a integração é hoje uma coisa quase que óbvia. O mundo está todo interligado. Eu escrevo um texto em casa que pode ser ligado quase que imediatamente do outro lado do planeta. Todas as informações circulam muito rapidamente. Qual é o sentido, então, de falar de um cinema ou de uma literatura gaúcha?

Sul21 - Como é que essa falta de integração se manifesta cotidianamente?
Jorge Furtado: Uma das piores coisas dessa falta de integração é o preconceito que costuma acompanhá-la. Um preconceito contra o Brasil, que é uma burrice completa, pois perdemos muita coisa boa. Isso se reflete em todas as áreas, inclusive na política. O Rio Grande do Sul já se considerou um Estado muito politizado, o mais politizado do Brasil. Lembro que na eleição direta de 1989, entre Lula e Collor, Porto Alegre foi talvez a cidade onde Lula teve sua maior vitória. Isso mudou completamente. O Rio Grande do Sul, que já foi um Estado mais à esquerda, hoje é dominado por um sentimento que é quase o oposto deste. Se formos considerar os índices de aprovação apontados pelas pesquisas, Porto Alegre e o Rio Grande do Sul talvez sejam o pior lugar do planeta para Lula. Em Nova York, Paris, na Espanha, todo mundo aprova Lula. Mas aqui há uma enorme restrição a ele. Porque não há nada mais brasileiro do que o Lula. Nordestino, que migrou para São Paulo, metalúrgico, etc. A impressão que me dá é que o Rio Grande do Sul, como não se sente muito como parte do Brasil, acha que está sendo governado por um estrangeiro...

Sul21 - Estamos sob intervenção...
Jorge Furtado: É, estamos sob intervenção. Mais ou menos isso. Há muito preconceito aqui, preconceito mesmo, contra baiano, contra nordestino... Até nosso futebol se identifica mais com o futebol argentino do que com o brasileiro. O que é curioso agora é que, no momento em que o Brasil está bombando, o Rio Grande do Sul está ficando para trás.

Sul21 - Como é que isso vem sendo transmitido, reproduzido e fortalecido ao longo de várias gerações?
Jorge Furtado: Isso se reproduz principalmente pela mídia, mas não só por ela. É algo que está acontecendo no Brasil inteiro e não só aqui no Rio Grande do Sul. A antiga imprensa, os grandes jornais, os grandes veículos de comunicação têm um pensamento muito homogêneo e o objetivo comum de retomar o poder que perdeu. Nos dizeres da própria presidente da Associação Nacional de Jornais, a imprensa assumiu o papel da oposição. Aí há uma confusão que muita gente faz e que precisa ser esclarecida. A função da imprensa é fazer oposição aos governos, no sentido de fiscalizar, de cobrar, de ficar em cima dos problemas que afetam a população. Só que isso deveria ser feito com todos os governos e não apenas com alguns e de vez em quando. Durante oito anos de governos dos tucanos vimos a imprensa muito mais favorável e muito menos crítica do que vemos hoje. Muito menos crítica do que tem sido nestes sete anos de governo Lula.
Deste modo, essa mídia reproduz e amplifica preconceitos. Eu vi, dias atrás, um programa Conversas Cruzadas, com gente de vários partidos, fazendo piada sobre o Maranhão. Uma das ditas, mencionando Sarney, foi: “Ele e o Maranhão se merecem”. Esse tipo de idéia, de que o Maranhão é um lugar desprezível e inferior, é reproduzido cotidianamente pela mídia. Por outro lado, a mídia não inventa propriamente isso. Ela seleciona, amplifica e fornece resumos diários.Mas isso é algo que acontece no país inteiro e praticamente em todo o mundo; não é algo exclusivo do Rio Grande do Sul. Talvez pelo fato de sermos uma sociedade mais homogênea e menos miscigenada essa mistura de racismo e preconceito seja mais disseminada aqui. Por outro lado, já tivemos governador negro, prefeito negro, Miss Brasil negra, temos um movimento negro importante. Então, não é que o Rio Grande do Sul seja um Estado racista. Mas essa idéia de que o que é bom para o Brasil não é necessariamente bom para o Rio Grande do Sul é muito presente. Desde a Revolução Farroupilha, muitas vezes o Estado esteve na contramão do Brasil. No próprio golpe militar, a única resistência ocorreu com o Brizola aqui no Rio Grande do Sul. Durante muito tempo, o Estado foi oposição e continua sendo. Essa mania oposicionista é muito forte aqui.

Sul21 - Esse ambiente pesou de algum modo em suas escolhas como cineasta?
Jorge Furtado: Acho que não. O que há de gaúcho nos meus filmes é o que é inevitável. Eu sou daqui, moro aqui, sempre trabalhei aqui, a equipe é daqui, filmo aqui. Mas a lógica sempre foi fazer filmes que funcionem em qualquer lugar. Nunca me passou pela cabeça a idéia de fazer um filme gaúcho. Eu era estudante de Medicina, curso que larguei para fazer Jornalismo, e me interessei por cinema a partir do movimento tocado por gente que estava fazendo super oito aqui em Porto Alegre. Naquele momento eu estava me interessando muito por cinema, especialmente em função da programação do cinema Bristol, que era um cinema programado pelo Romeu Grimaldi e que tinha ciclos especiais de filmes. Comecei a assistir a um monte de filmes diferentes e a me interessar pela diversidade de linguagens. Essa diversidade se traduziu em uma produção gaúcha de curtas e longas em super oito. O marco disso foi “Deu pra ti anos 70”, do Giba (Assis Brasil) e do (Nelson) Nadotti.
Em um certo sentido, não há nada mais porto-alegrense do que esse filme; a Osvaldo Aranha, o Nei Lisboa tocando, a garotada pegando carona. Isso é totalmente Porto Alegre, mas a cidade do filme poderia ser Oslo, poderia ser em qualquer lugar. São jovens buscando respostas e caminhos, um tema universal...

Sul21 - Considerando tal diagnóstico sobre a atmosfera cultura dominante no Rio Grande do Sul, você acha que seria o caso de fazer algum tipo de enfrentamento, alguma tentativa de desconstrução?
Jorge Furtado: Alguns enfrentamentos às vezes são necessários. O Nei Lisboa fez isso recentemente, provocando uma polêmica. Acho que a principal qualidade da cultura brasileira é a diversidade. Temos ritmos, cores e sotaques diferenciados. O Rio Grande do Sul, é claro, deu contribuições muito importantes à cultura brasileira. Mas tem vários problemas em relação à essa cultura. Além do isolamento que já referi, há também o que Freud chamou de narcisismo das pequenas diferenças. Isso aparece quando alguém, por exemplo, diz: “Eu não gosto do Caetano”, “eu não gosto disso”, “eu não gosto daquilo”. Ao mesmo tempo, essa pessoa não diz do que gosta, colocando-se numa posição superior, meio blasé. Nós temos um pouco isso, a postura de achar tudo mais ou menos, sem olhar para o próprio umbigo. E considerando que vale o que está escrito, cabe perguntar: cadê a literatura gaúcha, cadê a música gaúcha, o que é mesmo que nós estamos fazendo culturalmente?

Sul21 - A experiência da editora Globo, nas décadas de 40 e 50, foi uma espécie de exceção neste cenário?
Jorge Furtado: Sim, sem dúvida. O Veríssimo fala que Porto Alegre sempre foi uma cidade cosmopolita, progressista e moderna. Muita coisa, muita novidade surgia aqui. Acho que andamos um pouco para trás.
Há essa questão da polarização que merece atenção. Aqui todo mundo é Grêmio ou Inter, é PT ou é anti-PT, é uma coisa ou é outra. Essa lógica binária é pobre e insuficiente. Nem tudo envolve uma disputa ideológica tão clara. Há coisas que têm nuances que devem ser consideradas. É possível conversar sem interromper pontes. Infelizmente, aqui ainda vale aquela máxima do Capitão Rodrigo, quando ele se apresentava logo de início: “Buenas que me espalho, nos pequenos dou de prancha, nos grandes dou de talho”. Essa era a primeira frase dele e o gaúcho tem um pouco disso até hoje na política e na cultura, quando, muitas vezes, as coisas não são tão simples.

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