10.5.07

Habemus Papum

ANÁLISE - FLÁVIO AGUIAR
A visita do Santo Papa

Quem seguiu os Fóruns Mundiais de Teologia e Libertação pode ver como a Teologia cristã se tornou pólo de reflexão sobre questões contemporâneas, como feminismo e homossexualidade. O que Bento XVI pode fazer contra isso?
Flávio Aguiar - Carta Maior
O saudoso professor Eder Sader certa vez me relatou um encontro que ele assistira, na sede do Cebrap, sobre as CEBs – Comunidades Eclesiais de Base. Havia estudiosos e religiosos (ou ambos) de todas as tendências da Igreja Católica. Disse-me ele então que, independentemente da coloração específica de cada participante, todos concordavam que as CEBs eram importantíssimas na definição dos rumos da Igreja para o então próximo milênio, isto é, aquele em que estamos a partir de 2001. Aí, com aquele bom humor e aquele olhar maroto que o caracterizavam, Eder observou: “Flávio, eles pensam em milênios...”
A observação mostra que, quem não levar em conta essa dimensão histórica da Igreja Católica, e de algumas outras, fatalmente cairá em superficialidades nos seus comentários. Na mídia se observa dois tipos de embates no foco principal. Um diz respeito a “modos de vida”, envolvendo temas como aborto, sexualidade, contraceptivos, e afins. O outro diz respeito à Teologia da Libertação, marca da Igreja Latino-americana.
Nos dois se destacam as posições conservadoras de Bento XVI, como continuidade do pontificado de João Paulo II. Mas há diferenças notáveis entre eles. O Cardeal Ratzinger foi uma peça importante no tabuleiro enxadrístico de João Paulo II. Mas agora aconteceu que esse bispo (o termo vem a calhar) cresceu e dominou o tabuleiro.
João Paulo II, perto de Ratzinger/Bento XVI, era um “homem do mundo”. Bento XVI é um homem do claustro. João Paulo II era um papa midiático, talvez o primeiro que se preparou conscientemente para um desempenho sempre dramático e espetacular em frente a câmeras e mais câmeras. Com seus gestos às vezes um tanto espalhafatosos, de beijar o chão onde chegava, por exemplo, João Paulo II tornou-se um papa ao mesmo tempo conservador e carismático para os tempos modernos.
Além disso, João Paulo II foi um paladino da guerra fria, fazendo uma aliança sólida com os presidentes norte-americanos no sentido de: 1) derrubar o comunismo na Polônia, sua terra natal; 2) derrotar a União Soviética; e 3) neutralizar a Igreja revolucionária na América Latina, sobretudo na América Central. Recomendo neste sentido a leitura do excelente livro de Carl Bernstein (aquele jornalista de Watergate) e Marco Politi, “His Holiness”, publicado pela Penguin Books em 1996. Quando esteve na Argentina recusou-se a encontros com as Mães da Praça de Maio, e no Chile também recusou encontros com resistentes à ditadura de Pinochet (embora em particular tenha dito a assessores que pedira ao ditador que renunciasse).
Mas, ao mesmo tempo, João Paulo II notabilizou-se pelas suas aberturas em relação a ortodoxos, judeus e muçulmanos, por exemplo. Fica difícil precisar hoje se isso lhe vinha de convicções geopolíticas que ele tinha, sem dúvida, e nesse sentido ele foi dos papas mais políticos do século XX. Pode-se acusar João Paulo II de conservador, mas não de pusilânime, como Pio XII.
Bento XVI não é um papa midiático, nem um político nesse sentido em que seu antecessor foi. Bento XVI é um filósofo conservador, um homem de doutrina. Sua eleição foi surpreendentemente rápida, apesar de não ter surgido nenhum desafiante a sério. Apesar da séria rejeição que sua presença provoca em militantes das CEBs, ele não despertou nenhuma oposição frontal na hierarquia da Igreja. Sua aceitação quase universal nessa dimensão parece corresponder a uma preocupação de fundo que aflige esta hierarquia: a de que a doutrina da Igreja Católica faz tempo vem se esgarçando, na prática e na reflexão. Que efeitos a presença de Bento XVI terá no dia-a-dia dos militantes das CEBs? Aposto que quase nenhuma. A punição de Jon Sobrino, da Teologia da Libertação, só aumenta essa ruptura silenciosa da hierarquia eclesiástica. A punição do “silêncio obsequioso” só reforça a prática da “moita obsequiosa”, isto é, por baixo do pano continua tudo como dantes do mosteiro do Abrantes. Por outro lado, quem acompanhou os Fóruns Mundiais de Teologia e Libertação (o primeiro em Porto Alegre, em 2005 e o segundo em Nairobi, em 2007) pode observar como a Teologia cristã vem se ampliando e tornando-se um dos pólos mais importantes de reflexão sobre questões totalmente contemporâneas e definidoras dos rumos do pensamento sim, como horizontalização do poder, feminismo, homossexualidade, e por aí vai.
O esforço de preservar a unidade doutrinária da Igreja, que a eleição de Bento XVI mostrou, e centrada no poder do Vaticano, mostra que de fato ela vem sendo contestada no mundo inteiro e que, os maiores avanços no campo da Teologia e afins estão nas universidades, não mais nos corredores dos claustros.

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