31.1.07

América Latina!

Carta Maior: Pomar analisa avanço da esquerda na América Latina
Leia abaixo entrevista com o secretário de Relações Internacionais do PT, Valter Pomar, publicada no site da Agência Carta Maior:


Entre 12 e 17 de janeiro, representantes dos partidos de esquerda de toda a América Latina se reuniram no XIII encontro do Foro de São Paulo, fórum criado em 1990 para articular as legendas progressistas da região. O encontro trouxe à tona a problemática dos desafios partidários frente ao ascenso eleitoral na América Latina, que em 2006 foi marcado por diversas vitórias como as de Rafael Corrêa no Equador, Evo Morales na Bolívia, Daniel Ortega na Nicarágua e as reeleições de Hugo Chávez na Venezuela e Lula no Brasil. Mas é possível afirmar que este movimento eleitoral significa o fortalecimento da esquerda partidária na região? Para Valter Pomar, secretário de relações internacionais do PT, maior partido de esquerda da América Latina, é importante reconhecer as condições favoráveis para as forças progressistas mas ainda não há uma definição clara sobre o movimento em curso e nem para onde ele seguirá. Ele defende que há uma inegável perda de espaço do neoliberalismo e da pressão dos EUA sobre a região mas as alternativas a este modelo ainda não conseguiram surgir como algo que traga traços comuns. Um dos motivos para isso é a diversidade tanto das organizações partidárias quanto da relação que as forças progressistas desenvolvem com os governos populares eleitos. O mosaico partidário latinoamericano tem experiências como a brasileira, onde o PT desempenha, apesar de todas as pressões, um papel importante de organização das forças sociais que sustentam o mandato de Lula. Mas também apresenta casos como o do Equador, onde Rafael Correa foi eleito pela Alianza País, sigla que obteve desempenho pífio nas eleições parlamentares daquele país, e da Venezuela, onde Hugo Chávez recentemente propôs a criação de um novo partido frente à debilidade do atual.

Carta Maior: Há uma série de vitórias de esquerda na América Latina. É possível dizer que há uma hegemonia de esquerda na região?
Valter Pomar: Acho que o continente está se inclinando para a esquerda, mas não acredito que já possamos falar em uma hegemonia de esquerda na região. Hegemonia, num sentido muito amplo, inclui as relações econômicas, sociais, políticas e ideológicas. Se o critério for a presença de partidos de esquerda em governos da região, ou ainda o desempenho eleitoral de partidos de esquerda, ou ainda a derrota eleitoral de partidos de orientação neoliberal, poderíamos dizer que está se formando uma hegemonia de esquerda. Mas se observarmos as ações desenvolvidas pelos governos integrados ou encabeçados por partidos de esquerda, a coisa fica mais complexa. E se considerarmos a força que o grande capital, em particular financeiro, bem como a força que os EUA seguem tendo no conjunto da América Latina e Caribenha, o que se reflete na desigualdade social aqui existente, a maior do mundo, então a resposta terá que ser muito matizada. Finalmente, se analisarmos com uma perspectiva histórica mais alargada o conteúdo programático das forças de esquerda existentes na região, veremos que estamos falando não de uma, mas sim de várias esquerdas. Por tudo isto, acho mais preciso dizer que o neoliberalismo está sofrendo derrotas ideológicas, eleitorais e políticas, que os Estados Unidos estão tendo que ceder espaços, que há um processo de recuperação da influência das esquerdas nacionalistas e socialistas. Ou, de maneira mais sintética, que a América Latina e Caribenha vive um momento de transição, que o neoliberalismo e a hegemonia norte-americana estão ficando para trás, mas que o futuro ainda é incerto, embora haja um visível crescimento das forças de esquerda e o socialismo tenha voltado a fazer parte do debate político continental.

CM: É possível dizer que o ascenso destes governos está fundado no fortalecimento dos partidos de esquerda na AL?
VP: Existem países, como o Brasil, o Uruguai e a Nicarágua, onde a eleição de presidentes de esquerda está diretamente vinculada à construção, por décadas, de forças político-partidárias, como é o caso do Partido dos Trabalhadores, da Frente Ampla e da Frente Sandinista. Caso não tivesse havido uma fraude, teria sido o caso também do México, com o Partido da Revolução Democrática. Mas existem países onde os partidos, inclusive os de esquerda, têm pouca relação com a eleição dos atuais presidentes. É o caso da Bolívia, do Equador e da Venezuela. O que me parece um traço comum, tanto num como noutro caso, é o esgotamento ideológico e político-eleitoral das forças vinculadas ao neoliberalismo. E o que me parece uma exigência comum, em todos os casos, é fortalecer a organização das classes trabalhadoras, em particular de seus partidos políticos. Processos revolucionários e grandes reformas sociais só terão sucesso se tiverem ou forem capazes de forjar lideranças coletivas.

CM: É possível identificar identidades entre algum grupo de países quanto ao processo que vivem seus respectivos partidos de esquerda?
VP: Existem duas chaves de leitura possíveis. A primeira é utilizada tanto pela ultra-esquerda, quanto pelo Departamento de Estado norte-americano. Segundo esta chave-de-leitura, haveria "duas esquerdas" na América Latina: uma reformista (ou responsável, no pensar gringo), outra revolucionária (ou populista/irresponsável, no dizer dos gringos). Esta chave de leitura, embora tenha elementos de verdade, omite duas questões fundamentais. A primeira é que ela se limita a observar o comportamento dos partidos, quando seria mais correto analisar o processo social em que eles estão inseridos. E, se fizermos isso, vamos descobrir que há na América Latina países em situação pré-revolucionária e outros não, o que nos leva a julgar de maneira distinta a ação dos partidos envolvidos em cada processo. A segunda questão omitida nesta chave de leitura é que, mesmo com profundas diferenças, o que está em curso na América Latina e Caribenha é um processo desigual mas combinado. Neste sentido, acho mais relevante adotar outra chave de leitura: qual a posição dos partidos (inclusive os de esquerda) frente ao imperialismo norte-americano.

CM: Como você vê a situação boliviana? Há um fortalecimento do MAS como principal base de apoio do governo Morales?
VP: Minha impressão é que a situação boliviana tem elementos revolucionários. São estes elementos revolucionários que explicam a imensa mobilização social ocorrida nos últimos anos, que desembocou na vitória de Evo Morales nas eleições de 2005. Mas aí começam as contradições. Evo foi eleito presidente da República, encabeçando um segmento do aparato de Estado. Dada a fraqueza relativa dos partidos políticos e também das organizações sociais mais tradicionais, ele é obrigado a se apoiar neste aparato de Estado, para fazer as profundas mudanças que a maioria da população boliviana. Ou seja, ele precisa se equilibrar entre duas estratégicas: uma, de viés revolucionário, baseada principalmente na mobilização social, onde a luta faz a lei; e outra, baseada no controle de um ramo do Estado, baseada no apelo à legalidade e às instituições. Implementar esta estratégia exigiria, entre outras coisas, um partido político muito organizado e preparado do que o MAS parece ser. Por outro lado, os grandes processos sociais forjam seus instrumentos com a matéria-prima disponível. Assim, nos cabe, mais do que analisar, ajudar.

CM: E o caso da Venezuela? Hugo Chávez coloca como um dos pontos centrais para o próximo período a construção de um partido unificado em sua base de apoio, mostrando uma debilidade no processo venezuelano. Como você vê isso?
VP: O processo venezuelano tem características muito próprias, entre as quais eu destacaria a desmoralização da oposição de direita e sua enorme dependência do apoio norte-americano; o apoio de um importante setor das forças armadas ao rumo proposto por Chavez; os recursos provenientes da renda petroleira; e a fraqueza relativa dos partidos de esquerda e de organizações "clássicas", como os sindicatos. Isso ajuda a entender a distância entre a radicalidade das mudanças propostas pelo governo, vis a vis a representatividade e capacidade dirigente das organizações políticas que o apóiam. Neste sentido, faz todo o sentido construir um partido que unifique estas organizações políticas. Este processo de unidade das forças revolucionárias ocorreu em Cuba. Espero que, como em Cuba, se consiga um processo real de unificação e não algo artificial.

CM: Ainda no caso da Venezuela, Chavez coloca um suposto estágio mais avançado de seu país rumo ao socialismo do século XXI. Você concorda com esta afirmação?
VP: É difícil julgar um processo político-social, levando em consideração apenas o que dizem seus dirigentes. Seja como for, se as palavras têm algum sentido, socialismo é uma fase de transição entre o capitalismo e o comunismo. Isto supõe, portanto, a socialização da propriedade e do poder. Me parece óbvio que fazer isto é um desejo do governo Chavez. A pergunta é: as mudanças efetivamente ocorridas já nos permitem falar em socialismo, ou seja e por exemplo, em hegemonia da propriedade social sobre a propriedade privada, do público sobre o mercado, do poder popular sobre o Estado burguês? Ou o que temos é capitalismo de Estado e um governo popular? Chavez tem ajudado a colocar o socialismo de volta ao debate político continental. Mas é preciso cuidado para evitar que nossos desejos e necessidades, que exigem pressa, turvem nossa capacidade de análise.

CM: Por outro lado, há uma tensão entre partidos e movimentos sociais. Você concorda que os partidos de esquerda vivem hoje uma crise de representação? uma crise que tem uma de suas expressões no crescimento, entre movimentos sociais, de uma rejeição da forma tradicional de organização partidária?
VP: A questão é muito mais complicada. O enfraquecimento relativo da classe trabalhadora, em todo o mundo e não apenas em nosso continente, produziu um enfraquecimento das suas organizações clássicas, os sindicatos e os partidos. Não são apenas os partidos que enfrentam, em vários países, problemas de representatividade. Os movimentos sociais, em vários casos, também sofrem do mesmo mal. Ao lado disso, há uma campanha desenvolvida pelos grandes meios de comunicação, contra a política e contra os partidos políticos. Esta campanha encaixava-se com o discurso do "fim da história". Se nada havia para mudar, os governos deveriam ser entregues para "gerentes", não haveria diferença de projetos entre os partidos, que na verdade seriam máquinas de promoção de interesses pessoais, corporativos ou simplesmente excusos. E, finalmente, há divergências políticas sobre como combinar, num período não-revolucionário, em que a luta eleitoral e o exercício de governos constituem instrumentos fundamentais para a esquerda, a mobilização social e a ação dos partidos políticos. Minha leitura é que, mais do que uma tensão entre movimentos e partidos, há uma tensão entre militantes políticos que atuam em partidos, movimentos, parlamentos e governos, sobre qual deve ser a estratégia de poder da esquerda e sobre qual é o papel de cada forma de luta.

CM: A partir desta análise, quais são os principais desafios para os partidos de esquerda na América Latina?
VP: De forma bem resumida, ampliar nossa presença nos governos da região; implementar programas democrático-populares, que implementem reformas estruturais; fortalecer as classes trabalhadoras, econômica, social, política e ideológicamente; lutar pela integração continental; e combinar ações, para que a diversidade de estratégias e de situações não nos enfraqueça frente aos inimigos comuns: o imperialismo norte-americano, o neoliberalismo e o capitalismo. Para a esquerda socialista, que é uma parte da esquerda latino-americana, trata-se de aproveitar este momento tão favorável para fazer do socialismo uma alternativa real.

CM: Qual é a estratégia do PT para este processo? Qual papel o partido deve cumprir no próximo período junto às outras siglas de esquerda da região?
VP: O aspecto central da estratégia do PT é trabalhar pela integração continental, com o seguinte acento: que seja uma integração não apenas econômica e de infra-estruturas, mas também política e cultural; que seja uma integração não apenas entre governos, mas também entre povos. E que seja uma integração, não uma subordinação de uns a outros. Por isso o PT não aceita participar de competições para definir quem lidera o processo. Nem aceita, como é óbvio, ser liderado.
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